Gosto muito da Eliane Brum, quem não conhece eu recomendo. Nessa publicação ela nos leva a pensar e, quem sabe, até redefinir nossas prioridades e nosso modo de viver com o tempo.
Nós, que podemos ser acessados
por celular ou internet 24 horas, sete dias por semana, estamos vivendo no
tempo de quem?
Para vocês, Eliane
Brum...
Dias atrás, Gabriel Prehn Britto, do
blog Gabriel
quer viajar, tuitou a seguinte frase:
“Precisamos redefinir, com urgência, o significado de URGENTE”. “Urgente não é
mais urgente. Não tem mais significado nenhum.” Ele se referia tanto ao urgente
usado para anunciar notícias nada urgentes nos sites e nas redes sociais,
quanto ao urgente que invade nosso cotidiano, na forma de demanda tanto da vida
pessoal quanto da profissional. Depois disso, Gabriel passou a postar uns
“tuítes” provocativos, do tipo: “Urgente! Acordei” ou “Urgente: hoje é
sexta-feira”.
A provocação é muito precisa. Se há algo
que se perdeu nessa época em que a tecnologia tornou possível a todos
alcançarem todos, a qualquer tempo, é o conceito de urgência. Vivemos ao mesmo
tempo o privilégio e a maldição de experimentarmos uma transformação radical e
muito, muito rápida em nosso ser/estar no mundo, com grande impacto na nossa
relação com todos os outros. Como tudo o que é novo, é previsível que nos
atrapalhemos. E nos lambuzemos um pouco, ou até bastante. Nessa nova configuração,
parece necessário resgatarmos alguns conceitos, para que o nosso tempo não seja
devorado por banalidades como se fosse matéria ordinária. E talvez o mais
urgente desses conceitos seja mesmo o da urgência.
Estamos vivendo como se tudo fosse urgente.
Urgente o suficiente para acessar alguém. E para exigir desse alguém uma
resposta imediata. Como se o tempo do “outro” fosse, por direito, também o
“meu” tempo. Esse se apossar do tempo do outro pode ser compreendido como uma
violência. Mas até certo ponto consensual, na medida em que este que é
alcançado se abre/oferece para ser invadido. Torna-se, ao se colocar no modo “online”,
um tempo à disposição. Mas exige o mesmo do outro – e retribui a possessão.
Olho por olho, dente por dente. Tempo por tempo.
Como muitos, tenho tentado descobrir
qual é a minha medida e quais são os meus limites nessa nova configuração. E
passo a contar aqui um pouco desse percurso no cotidiano, assim como do
trilhado por outras pessoas, para que o questionamento fique mais claro.
Descobri logo que, para mim, o celular é insuportável. Não é possível ser
alcançada por qualquer um, a qualquer hora, em qualquer lugar. Estou lendo um
livro e, de repente, o mundo me invade, em geral com irrelevâncias, quando não
com telemarketing. Estou escrevendo e alguém liga para me perguntar algo que
poderia ter descoberto sozinho no Google, mas achou mais fácil me ligar, já que
bastava apertar uma tecla do próprio celular. Trabalhei como uma camela e, no
meu momento de folga, alguém resolve me acessar para falar de trabalho,
obedecendo às suas próprias necessidades, sem dar a mínima para as minhas. Não,
mas não mesmo. Não há chance de eu estar acessível – e disponível – 24 horas
por sete dias, semana após semana.
Precisamos encontrar um jeito de usar a
tecnologia sem ser usada por ela.
O interessante é que quem não adota a
tecnologia como todos, é mal visto. Como assim eu não posso falar com você na
hora que eu quiser? Como assim o seu tempo não é um pouco meu? E se eu precisar
falar com você com urgência? Se for urgência real – e quase nunca é – há outras
formas de me alcançar.
Percebi também que, em geral, as pessoas
sentem não só uma obrigação de estar disponíveis, mas também um gozo. Talvez
mais gozo do que obrigação. É o que explica a cena corriqueira de ver as
pessoas atendendo o celular nos lugares mais absurdos (inclusive no
banheiro...). Nem vou falar de cinema, que aí deveria ser caso de polícia. Mas
em aulas de todos os tipos, em restaurantes e bares, em encontros íntimos ou
mesmo profissionais. É o gozo de se considerar imprescindível. Como se o mundo
e todos os outros não conseguissem viver sem sua onipresença. Se não atenderem
o celular, se não forem encontradas de imediato, se não derem uma resposta
imediata, catástrofes poderão acontecer.
O celular ligado funciona como uma
autoafirmação de importância. Tipo: o mundo (a empresa/a família/ o namorado/ o
filho/ a esposa/ a empregada/ o patrão/os funcionários etc) não sobrevive sem
mim. A pessoa se estressa, reclama do assédio, mas não desliga o celular por
nada. Desligar o celular e descobrir que o planeta continua girando pode ser um
risco maior. Nesse sentido, e sem nenhuma ironia, é comovente.
Por outro lado, é um tanto egoísta, já
que a pessoa não se coloca por inteiro onde está, numa aula ou no trabalho ou
mesmo em casa – nem se dedica por inteiro àquele com quem escolheu estar, num
encontro íntimo ou profissional. Está lá – mas apenas parcialmente. Não há como
não ter efeito sobre o momento – e sobre o resultado. A pessoa está
parcialmente com alguém ou naquela atividade específica, mas também está
parcialmente consigo mesma. Ao manter o celular ligado, você pertence ao mundo,
a todo mundo e a qualquer um – mas talvez não a si mesmo.
Me parece descortês alguém estar comigo
num restaurante, por exemplo, e interromper a conversa e a comida para atender
o celular.. Será que isso é realmente necessário? Será que uma pessoa não pode
se ausentar, ficar incomunicável, por algumas horas? Será que temos o direito
de invadir o tempo dos outros direta ou indiretamente? Será que há tantas
urgências assim? Como é que trabalhávamos e amávamos antes, então?
Bem, eu não sou imprescindível a todo
mundo e tenho certeza de que os dias nascem e morrem sem mim. As emergências
reais são poucas, ainda bem, e para estas há forma de me encontrar.
Minha principal forma de comunicação é
hoje o e-mail, porque sou eu que escolho a hora de acessá-lo. E, ao procurar
alguém, seja por motivo profissional ou pessoal, tenho certeza de não estar
invadindo seu cotidiano em hora imprópria. E desligo o computador antes de
dormir, como gesto simbólico que diz: fechei a porta.
É um momento histórico bem estratégico
de redefinição de limites, de territórios e também de conceitos. Que tipo de
efeito terá sobre as novas gerações a ideia de que não há limites para
alcançar, ocupar e consumir o tempo dos pais e amigos e mesmo de desconhecidos?
Assim como não há limites para ter o próprio tempo alcançado, ocupado e
consumido?
Ainda acho que o gozo de ser imprescindível a quase todos os
outros – no sentido de não poder se ausentar ou se calar – e também de ser
onipotente – no sentido de alcançar, a qualquer hora, o tempo de todos os
outros – é maior do que o incômodo. Mas talvez só aparentemente, na medida em
que é possível que não estejamos conseguindo avaliar o estrago que esses tempos
violáveis e violados possam estar causando na nossa subjetividade – e mesmo na
nossa capacidade criativa e criadora.
A grande perda é que, ao se considerar
tudo urgente, nada mais é urgente. Perde-se o sentido do que é prioritário em
todas as dimensões do cotidiano. E viver é, de certo modo, um constante
interrogar-se sobre o que é importante para cada um. Ou, dito de outro modo,
uma constante interrogação sobre para quem e para o quê damos nosso tempo, já
que tempo não é dinheiro, mas algo tremendamente mais valioso. Como disse o
professor Antonio Candido, “tempo é o tecido das nossas vidas”.
Falamos e ouvimos muito, mas de fato não sabemos se dizemos algo e se escutamos
algo. Ou se é apenas ruído para preencher um vazio que não pode ser preenchido
dessa maneira.
Será que não é este o nosso mal-estar?
Viver no tempo do outro – de todos e de
qualquer um – é uma tragédia contemporânea.
(Trechos do texto escrito pela
jprnalista Eliane Brum, para lê-lo na íntegra acesse: http://revistaepoca.globo.com//Sociedade/eliane-brum/noticia/2013/04/e-urgente-recuperar-o-sentido-de-urgencia.html
)
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